José Pacheco Pereira (JPP) no seu matricial blogue “ Abrupto” realizou em Março de 2005 no habitual “O Abrupto feito pelo Leitores “ uma série sobre Bibliotecas. JPP recebeu inúmeros textos onde diversos utilizadores de bibliotecas descreviam as suas múltiplas experiências. Desses textos publicados em nove séries (entre 3 e 17 de Março), doze deles reportavam a bibliotecas da Gulbenkian, quer fixas, quer itinerantes. Desses apontamentos, existiram dois que realço. IV Série - 6/03/005
"Há momentos únicos nas nossas vidas. Por isso, também eu gostaria de falar de uma biblioteca. A minha primeira biblioteca. Diferente. Sem claustros, lareiras ou jardins, mas com rodas. Igualmente digna, a minha primeira biblioteca. Chegava uma vez por mês, lá pelos finais de 60 e início dos 70. Ainda hoje não consigo decifrar a magia que levava um significativo número de miúdos de uma aldeia dos arredores de Viseu, a percorrer cinco ou seis quilómetros, a pé, para ir trocar os livros que no mês anterior tinham requisitado. Sei apenas que, para muitos, essa foi a semente que fez nascer o gosto e o amor pelo livro e pela magia da leitura. É engraçado que muitos anos e muitas Bibliotecas depois, continuam claramente presentes na minha memória as pequenas estantes apinhadas de livros de aventuras e de mundos desconhecidos. A velha carrinha Citroën (acho que eram dessa marca) deve agora enferrujar no fundo de algum silvado. Fica, no entanto, um perene reconhecimento à Fundação Gulbenkian e ao saudoso David Mourão Ferreira por terem permitido a muitos miúdos olhar para dentro de um livro." (D.S.)
VI Série - 9/03/005
" (…) Uma visita por mês era o que a minha vila tinha direito. Para uma miúda da beira interior com uma enorme curiosidade e muita vontade de ler, a carrinha da Gulbenkian era a melhor coisa do mundo! Às sete da noite lá estava ela, a carrinha Citroën, série H, cinzenta, de chapa canelada, com taipais. Interessante como a memória funciona, lembro-me perfeitamente da primeira vez que lá fui com a minha mãe, devia ter cinco anos, também ela fora frequentadora assídua da carrinha da Gulbenkian, nos seus tempos de escola.
A carrinha era conduzida por dois senhores, que estacionavam sempre no mesmo sitio, junto ao restaurante 'O Júlio', quando chegavam fosse Verão ou Inverno já a canalha se acotovelava para ver quem ficava a frente na bicha (era bicha que se dizia!). Pois isso significava ser o primeiro a entrar e a descobrir quais eram os 'novos' livros. O ritual era igual todos os meses, a janela da porta direita abria-se e um dos senhores pedia-nos o cartão e os livros que requisitamos no mês passado. A carrinha no interior estava forrada a livros do chão ao tecto, ao fundo havia uma bancada para se preencher a referência dos livros requisitados no cartãozinho previamente fornecido pelo funcionário da Gulbenkian.
Uma vez lá dentro era o ver se te havias, porque não tinha muito tempo para procurar os três livros (máximo possível), e depois havia o condutor/bibliotecário, que mais parecia o polícia das fitas adesivas! Uma das coisas que me irritava era que só podia levar livros com fita adesiva verde, e está claro os de cor laranja ou, pior ainda, vermelha, os das prateleiras de cima eram precisamente os que queria levar. Muitos foram os livros que li durante os 12 anos que religiosamente visitei a carrinha da Gulbenkian. Recordo-me agora particularmente do livro 'Beatriz e o Plátano' de Ilse Losa. Os meus pais incutiram-me o gosto pela leitura mas foi definitivamente a carrinha da Gulbenkian que ajudou a cultivá-lo. A carrinha não só abriu as portas para o mundo da leitura mas criou também em mim um sentido de responsabilidade, e civismo e orgulho, pois quando se entregavam os livros a tempo e horas e estimados, podia eventualmente aceder-se aos tão desejados livros 'laranja' e 'vermelhos'.
Mais tarde na minha vida de estudante visitei muitas bibliotecas; a Biblioteca Nacional com o seu hipnotizante painel de Tapeçaria de Portalegre de Guilherme Camarinha, a desactualizada Bibiloteca do Palácio das Galveias, no Campo Pequeno e a mãe de todas as bibliotecas para uma estudante de Arte em Lisboa, a Gulbenkian. Mas o cocktail de sentimentos causado pela carrinha da Gulbenkian, esse até hoje nunca foi superado. É com nostalgia que do alto dos meus 28 anos penso neste serviço que ajudou a fazer de mim o que sou hoje. Grata ao Sr. Gulbenkian e a quem iniciou e pôs em prática este serviço."
(Sofia Gonçalves) |